Depois que Steve Nash, quase que comicamente, voltou a sentir dores nas costas após tentar carregar suas malas há algumas semanas, todos temiam pelo pior. E o pior chegou na noite de ontem: o problema voltou a afetar os nervos da sua coluna e ele está fora de toda a temporada 2014-15. Esta que seria, segundo o próprio jogador, a última de sua carreira. Já com 40 anos e com um problema grave em uma área de difícil recuperação, o mais provável é que nunca mais veremos Nash numa quadra da NBA.
Imagino aqui que todos estejam igualmente tristes e que não seja necessário ficar lembrando o quanto Nash foi espetacular e importante para o basquete nos últimos 10 ou 15 anos, mas não é questão de necessidade, é desejo. Quero escrever e imagino que muitos queiram reler sobre a importância do armador. Dizem que a aposentadoria é uma primeira morte para um atleta, então relembrar o que todos ainda não esqueceram é o ritual de luto do comentarista esportivo.
Nascido na África do Sul, criado desde pequeno no Canadá, fanático por futebol, sem explosão física e altura, Steve Nash tinha tudo, absolutamente tudo para nunca ser ninguém no basquete, esporte que só começou a praticar aos 13 anos. Sua carreira de basquete no colegial foi boa, mas escondido em Vancouver, nenhuma grande universidade americana deu bola pra ele. Seu técnico precisou mandar fitas para mais de 30 equipes até que o treinador da Universidade de Santa Clara se interessasse pelo jogador apesar dele ser “o pior jogador de defesa que eu já tinha visto”.
Santa Clara nunca foi grande coisa em revelar grandes nomes do basquete da NBA. Até hoje foram apenas 13 jogadores, sendo que só 3 tiveram algum destaque na liga: Nash, Kurt Rambis e Dennis Awtrey. Desde 1999 nenhum jogador de lá ultrapassa o Draft e chega aos profissionais. Mas foi lá que Nash fez boas 4 temporadas e superou uma pequena queda de produção em seu último ano para ser a 15ª escolha do Draft de 1996 pelo Phoenix Suns. Como esperado por muitos, sem a explosão física e a defesa ainda bem frágil, teve pouco impacto e logo foi trocado para o Dallas Mavericks.
No time recém-adquirido por Mark Cuban as coisas começaram a mudar. Ao lado do improvável Steve Nash, o Mavs também apostava em outro gringo improvável: Dirk Nowitzki. Um canadense anão que não saia do chão e um alemão (JOGADOR DE BASQUETE ALEMÃO!) que tinha mais de 2,10m de altura mas preferia arremessar de média e longa distância. O que eles tinham na cabeça? Mas como num bom filme de Sessão da Tarde, os dois usaram a adversidade e a pressão para primeiro virar grandes amigos e, depois, ótimos jogadores. Ambos refinaram o entrosamento dentro de quadra e deram a sorte de encontrar com Don Nelson, um dos técnicos mais malucos, criativos e excêntricos da história da NBA. O que Nelson pedia de seu time era justamente o que Nash e Nowitzki poderiam oferecer naquele momento de suas carreiras: velocidade, decisões rápidas e muitos arremessos de longa distância.
Quando pensamos no começo dos anos 2000 na Conferência Oeste, pensamos em Los Angeles Lakers, San Antonio Spurs e Sacramento Kings, mas, por incrível que pareça, o Mavs, finalista de conferência em 2003, foi o time que teve o melhor ataque de toda a liga em 2001-02, 2002-03 e 2003-04. Na época, pré-estatísticas avançadas, achávamos que o maior número de pontos do Mavs era resultado de um ataque exagerado e desorganizado. Realmente era, mas os números de hoje mostram que nos 3 anos citados, o Mavs liderou a liga também em pontos por posse de bola, não só pontos totais. Se eles perdiam, poderia ser pela defesa ou por um pouco de desorganização em jogos decisivos (ou só porque Spurs e Kings eram melhores), mas jamais porque não eram eficientes no ataque. Arremessavam muito, corriam muito e faziam tudo isso muito bem.
Mas as derrotas pesam e o Dallas Mavericks achou que seu modelo estava errado. Ao fim da temporada 2003-04, que viu a defesa do Detroit Pistons vencer a NBA com Rasheed Wallace e Ben Wallace segurando adversários a placares de basquete juvenil, o Mavs decidiu entrar na moda. Com pouco espaço salarial para renovar o time, o time preferiu não renovar o contrato de Steve Nash e usar a grana para contratar o pesado pivô Erick Dampier, que havia feito boa temporada pelo Golden State Warriors. A proposta de renovação por Nash, já com 30 anos na época, foi de 36 milhões milhões por 4 anos. O Phoenix Suns ofereceu 63 milhões por 6 anos. Nash voltou ao Mavs e disse que, se igualassem, ele ficaria. Não toparam para não melar o negócio de Dampier e Nash retornou ao time que o draftou em 1996.
Começou então mais um capítulo de coisas improváveis na carreira do canadense. Já aos 30 anos, quando a maioria dos jogadores começa a sua decadência, Nash começou o seu auge. Sob o comando do técnico Mike D’Antoni, o Suns começou a jogar no sistema conhecido por “7 seconds or less”, onde o objetivo principal do ataque era decidir a jogada em 7 segundos ou menos, antes que a defesa adversária pudesse se posicionar adequadamente. Para incentivar a velocidade, o espaço e as decisões rápidas, o Phoenix Suns passou a abolir pivôs pesados (apesar da recaída de anos depois quando contrataram Shaquille O’Neal), a jogar com 4 jogadores abertos e a valorizar mais do que qualquer outro time as bolas de 3 pontos, especialmente a da zona morta. No ataque de meia-quadra, quando os contra-ataques não davam certo, o jogo se baseava na já clássica dupla de pick-and-roll de Nash e Amar’e Stoudemire. Bolas de 3 pontos em abundância, jogadores versáteis, pivô único, corner 3, velocidade e pick-and-rolls: o Phoenix Suns moldou a NBA contemporânea.
As ideias foram desenvolvidas por Mike D’Antoni, que até hoje não recebe crédito apropriado por essa revolução devido a alguns trabalhos ruins depois que saiu de Phoenix, mas não dá pra negar que ela só foi possível porque Steve Nash transformou tudo em realidade. Um armador sem seus precisos arremessos de três pontos, sem os passes para achar todos esses arremessadores livres e sem a capacidade de pensar, decidir e passar a bola driblando em velocidade o esquema teria ido para o ralo na metade de sua primeira temporada. Se Nash já tinha sido bom no esquema porra-louca de Don Nelson, ele virou o mais decisivo jogador da NBA quando a correria ganhou um pouco de regras, padrões e lógica sob D’Antoni. Lembra que o Mavs havia liderado a NBA em pontos por posse de bola nos últimos 3 anos de Nash por lá? Pois o Suns assumiu a liderança quando Nash chegou e ficou assim até 2010: são 9 (NOVE) temporadas seguidas com o ataque comandado por Nash se consagrando como o mais eficiente da NBA.
A NBA também deveria agradecer muito à Steve Nash. Depois do título do Detroit Pistons em 2004, a NBA viu outra final pesada, lenta e focada na defesa em 2005, quando o mesmo Pistons foi derrotado pelo San Antonio Spurs em 7 jogos. Aquele Spurs, embora com o mesmo princípio solidário de hoje em dia, era mil vezes mais lento e burocrático que o de hoje. Seu jogo se baseava em cortar o ritmo do adversário, jogar a bola em Tim Duncan e usar da marcação dupla que ele atraia para tocar a bola de maneira quase mecânica. Era eficiente, era um basquete bem jogado e merece sua admiração, mas estava matando a audiência da NBA, que temia perder fãs.
Era compreensível, afinal se Pistons e Spurs estavam mandando na NBA, os outros times iriam querer imitar. Isso significava jogo amarrado, menos posses de bola e menos pontos. Iria para o ralo a imagem que a NBA se orgulhava de ter, de ser o basquete de placares altos e de jogadas de efeito. O momento em que o Suns começou a jogar com velocidade e quase ignorando a defesa, portanto, era o menos indicado possível. Estavam indo completamente contra a maré. Mas o basquete deles era tão rápido, criativo, cheio de jogadas de efeito e placares elásticos que logo virou o favorito de todo mundo. Nash, que um ano antes era só o armador que o Mavs tinha muito medo de gastar dinheiro, se tornou duas vezes seguidas o MVP da NBA. Os jogadores queriam jogar em esquemas parecidos, os torcedores queriam ver seus times jogando com esse mesmo ímpeto ofensivo e os General Managers viram no Suns uma maneira nova de construir equipes.
Pauso a sequência histórica aqui para relembrar o quanto essa trajetória era improvável. Só aos 30 anos de idade, depois de uma carreira apenas boa, um armador canadense se torna duas vezes seguidas o melhor jogador da temporada da NBA! Isso durante o auge de Tim Duncan, Kevin Garnett e Kobe Bryant. Não é à toa que existem canadenses que defendem Nash como o melhor e mais importante esportista do país, superando até Wayne Gretzky, considerado para muitos o maior jogador de hóquei de todos os tempos (no país no hóquei!). O motivo, polêmico, é até simples e pode ser entendido com uma comparação um pouco forçada aqui no Brasil. Pelé pode ser o melhor jogador de futebol de todos os tempos e é brasileiro, mas não parece apenas uma questão de tempo até o Brasil formar o melhor do mundo? Muitos jogadores espetaculares de futebol vieram antes de Pelé, muitos jogaram ao seu lado e tantos outros vieram depois. Por algum motivo produzimos grandes jogadores e claro que um ia calhar de ser superior aos outros. Mas e, sei lá, o Guga? O Brasil teve um tenista (!) tri-campeão de Grand Slam e que terminou uma temporada como melhor tenista do planeta. Sem nada a favor dele, o cara foi lá e se infiltrou num ambiente dominado por outros e se destacou absurdamente. Nash fez isso no basquete e um pouco mais.
A questão vai um pouco além para Steve Nash porque ele virou uma celebridade fora da quadra. Mais do que comerciais, Nash se tornou porta-voz de questões sociais e virou uma pessoa admirada e influente em seu país. Jornalistas de Toronto, que cobrem o Raptors, sempre falam do desejo enorme que a franquia tinha de levar Nash para lá para tentar se aproveitar da adoração que o país tem pelo seu jogador. A NBA quebra recordes de presença de canadenses nessa temporada e dois deles foram a primeira escolha dos últimos drafts: Anthony Bennett e Andrew Wiggins. Ao lado deles, Tyler Ennis, Robert Sacre, Kelly Olynyk, Nik Stauskas, Tristan Thompson, Cory Joseph e Andrew Nicholson são fãs declarados de Steve Nash e pretendem colocar o Canadá no mapa do basquete internacional. Mesmo ainda em atividade, Nash assumiu há alguns anos o papel de General Manager da seleção nacional canadense e tem um plano de longo prazo, desde a revelação de jogadores até seu desenvolvimento, para que o país tenha resultados expressivos na próxima década. Nash inspirou jovens jogadores, popularizou o esporte e agora ajuda a melhor a seleção. Ele não faz tudo sozinho, mas está em toda parte.
E sabe como os canadenses tem a fama de serem bonzinhos até demais? Esterótipo criado e espalhado pelos americanos, mas que Steve Nash ajudou a consolidar do melhor jeito possível. Sempre foi gente fina com todo mundo, mas jogando agressivamente o bastante para não ganhar aquele chato rótulo de “soft“. Já disputou jogo decisivo de Playoff com o nariz quebrado e sangrando (já arrumou o nariz no meio de um jogo), já fez bolas decisivas na cara de Bruce Bowen e era dedicado o bastante para liderar times importantes até quase os 40 anos. Arrisco dizer que não existe uma pessoa na NBA que não admire ou respeite Steve Nash e isso explica o clima de luto que tomou conta da internet quando soubemos que a carreira dele tinha acabado de uma maneira tão ruim.
Se você perguntar para um atleta o que ele prefere, se é revolucionar o esporte que joga ou se é ser campeão da maior competição possível, a maioria deve responder que prefere os títulos. No mundinho deles, com a cabeça vidrada em competição como eles têm, a coisa mais importante é ganhar, ganhar e ganhar. Então é provável que Steve Nash se aposente com aquela mesma frustração de Karl Malone, Charles Barkley e Allen Iverson: de que adianta eu ter feito tanto, tantos gostarem de mim, e mesmo assim não ter vencido um título sequer?
A cabeça é dele e não podemos ir lá mexer, mas daqui, olhando de longe, o título é o de menos. Vencer campeonatos envolve mais do que um jogador, é elenco, é adversário, técnico, sorte, punições absurdas, lesões, poucas posses de bola em jogos que podem ir para qualquer lado. Mas mudar para sempre a cara do esporte pelo qual você se dedicou a vida toda é para poucos! Steve Nash, se realmente se aposentar agora, vai embora como principal personagem da última grande revolução tática da NBA, tendo mudado a cara e a popularidade do basquete no Canadá, com dois troféus de MVP, uma penca de aparições em All-Star Games e alguns recordes impressionantes: líder da história da liga em aproveitamento de lances-livres (90,4%) e membro do exclusivíssimo Clube do 50-40-90. Para quem não conhece, o clube é para quem já acabou uma temporada da NBA com ao menos 50% de aproveitamento nos arremessos de quadra, 40% de 3 pontos e 90% nos lances-livres. Além de Nash, apenas Kevin Durant, Dirk Nowitzki, Reggie Miller, Mark Price e Larry Bird. A maioria conseguiu as marcas apenas uma vez na carreira, mas Bird conseguiu duas e Nash, bem, Nash conseguiu 4 vezes entre 2005 e 2009. Época, aliás, onde liderou a NBA também em assistências todo santo ano.
Sinceramente, precisa de mais? Azar do anel que não pode ir pro dedo do Nash.
[author title=”Defenestrado por” author_id=Denis””]
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